quinta-feira, 17 de dezembro de 2009




Estes contos são de Sandra Moss, filha de Ângela Moss de Sá. É de família.

Leiam os dois. Vocês vão gostar.
A Beleza do Outro
Naquele dia acordei de bem com vida. Espreguicei-me com calma e adivinhei, pela fresta da cortina: fazia um dia lindo lá fora! No banheiro, olhei-me no espelho e gostei do que vi: a pela viçosa, o olhar descansado, os cabelos desalinhados, meio selvagens. Nem as celulites, que geralmente me deixam deprimida, incomodaram-me. Nada como uma boa noite de sono para me deixar feliz.

Durante o café, meus pensamentos vagaram por amenidades. Sem o jornal, que resolvi abolir nos dias de semana, distraí-me com o papo de duas vizinhas que trocavam receitas na garagem: bolo de cenoura com calda de chocolate. Morar no primeiro andar é assim - você acaba acompanhando a vida de toda a vizinhança.

Nenhuma urgência, nenhuma angústia.
Levei algum tempo para escolher a roupa que iria vestir. Não poderia ser nada muito escuro: preto ou cinza, fora de cogitação. Talvez a blusa azul que ganhara de presente de aniversário e que estava guardando para um momento especial? Sim, aquele era um dia especial, há tempos não me sentia tão leve.

A melhor felicidade é aquela que não tem por quê. Sentir-se feliz por nada, quero dizer, por nada em especial, simplesmente feliz!

Fui caminhando para o metrô, como faço todos os dias; mas, nesse dia, calmamente, sem pressa. Nem me incomodei com o trânsito que, àquela hora, já estava irritado.

Chegando à estação, comprei o ticket e me sentei num banquinho da plataforma para esperar o trem. E foi aí, nesse exato momento, que ela apareceu.

Primeiro, senti seu perfume. Suave, com um leve tom adocicado. Nossa, que cheiro bom! Levantei os olhos, curiosa: devia ter 1,75m. Pernas esguias, cintura fina, quadris arredondados. Os seios perfeitos, ligeiramente proeminentes no decote. A pele morena, cor de jambo, brilhava. O pescoço, alongado, completava o perfil escultural, emoldurado por cabelos ... sim, esses sim, selvagens. Carregava uma sacola florida e usava um vestido leve, de algodão. Super feminino.

Nesse momento, o trem entrou na estação. Levantei-me e observei o seu andar elegante. Encaminhamo-nos para a porta do mesmo vagão. Ela levou a mão ao rosto para afastar uma mecha de cabelo que escorregava, displicente, pela face: as unhas, vermelho carmim, lin-das! Sem perceber, enfiei as mãos nos bolsos.

Antes que a porta abrisse, observei meu reflexo na janela do trem. Arrependi-me de estar usando sapatilhas. Um saltinho teria me deixado mais elegante. E aqueles quilinhos que eu não conseguia perder? Sim, começaria a dieta da sopa no dia seguinte.

Autoflagelo: sopa no café da manhã, sopa no almoço e sopa no jantar.

Entramos juntas no vagão, que a essa hora já estava quase lotado. Por sorte, consegui um assento e acomodei-me perto da porta. Ela não conseguiu sentar-se e ficou em pé. Bem ali, na minha frente. Distraída, elegante e linda, sem nem perceber os olhares que se dirigiam a ela.

Repolho, nabo, espinafre, couve e cenoura. Ou será pepino?

Na estação seguinte, saltou. Não se deu conta do estrago que tinha feito.

Desci na Candelária e subi as escadas da estação ainda pensando na dieta da sopa. Na rua, não vi a manhã esplêndida de outono que coloria a cidade. Tudo vermelho e amarelo, vibrantes. Menos eu.

Caminhei apressada. Quando cheguei ao escritório, já não me lembrava que aquele era um dia feliz.



A Beleza dela

- Esse Jair é um filho da puta mesmo. Que a mãe dele me perdoe, mas quem mandou colocar no mundo um ser humano tão desprezível. E agora que foi promovido a diretor, é que ficou insuportável mesmo. Sempre foi arrogante e dissimulado. Não suporto gente falsa. Entra aqui, na minha sala, como se fosse o meu melhor amigo. Pergunta pela família, pelo cachorro e até pelo Chico, o meu periquito - que só de ouvir a voz dele
fica completamente maluco. Depois, solta uma das suas piadinhas totalmente sem graça e dá aquela gargalhada forçada. E aí, como quem não quer nada, vira pra mim e diz que mudou de idéia sobre o projeto? E ainda me pede para refazer todos os cálculos. Um dia desses, ainda vai levar um soco bem no meio da cara. Olha, não sou um sujeito violento, não... mas também não tenho sangue de barata. O cara tá pensando que eu sou idiota? Quer saber de uma coisa? Pra mim chega. Esse trabalho fica para amanhã! E se a ponte cair, que caia! Tô cansado de levar essa empresa nas costas. Fui!


E foi assim que o Raul saiu do trabalho, naquele dia. Puto da vida e rogando uma centena de pragas para o Jair. No elevador, apertou o botão da garagem, como fazia todos os dias; e foi só quando a porta abriu que lembrou que o carro tinha ficado na oficina.


- Ah, não! Não estou acreditando que eu esqueci o "negão" na oficina. Na droga da oficina, que já fechou. Esse não é o meu dia, mesmo. Não sei nem por que levantei da cama hoje. Devia ter ficado lá, até o meio-dia. Depois, eu ligava pro trabalho e inventava uma dor de barriga. Fácil assim E passava o resto do dia tomando uma cervejinha em frente da televisão. É porque eu sou muito babaca mesmo... Dez anos aturando esse Jair. Dez anos!


Subiu as escadas da garagem e foi caminhando para o metrô. Xingava o Jair, a mãe do Jair e todo o resto da família do Jair. Até para a Joana sobrou.


- Se a Joana pensa que eu vou comer aquela sopa hoje, ela está muito enganada. Mas não como nem morto! Que mania de sopa: é sopa no café, sopa no almoço e sopa no jantar. Dieta de limpeza. Que limpeza, porra? Tá tudo super limpo lá em casa. Quer saber de uma coisa? Hoje eu vou comer a macarronada do Seu Manoel. Bem ali. No boteco da esquina. E, se ela não gostar... que se dane!


Desceu as escadas do metrô, como se estivesse num transe. A estação estava cheia, procurou colocar-se no início da plataforma. Assim, iria saltar ao lado da saída para a Marquês de Abrantes. Dali até em casa, um pulo. Depois, um banho e a macarronada do seu Manoel!


Quando o trem chegou, apressou-se para entrar, na tentativa de conseguir sentar-se. Nada feito. Vagão lotado. Ia ter que viajar em pé mesmo. Pouca sorte, ou não. Porque foi aí, nesse exato momento, em meio às pragas que rogava para o Jair, que sentiu o perfume dela.


– Nossa! Que cheiro bom...


Virou-se, curioso, e deparou-se com um metro e setenta de pura beleza: “Cara, que gostosa... O que é isso? A mulher é uma deusa. Que peitinho... Nesse vestidinho. E tá de calcinha pequena! Ai, meu Deus, me belisca, não tô acreditando. Que boca!... Eu passo a noite te beijando, baby. Olha pra mim, vai. Só um olharzinho para me dar confiança. Só um unzinho.”


Mas a moça não olhou. Ficou ali: distraída, elegante e linda. Sem nem perceber o encantamento que tinha provocado.


Quando o trem chegou à estação do Flamengo, ficou num impasse: salto ou não salto? Não deu tempo de decidir - foi sendo empurrado para fora do vagão, pelas pessoas que saíam apressadas. Sem querer, esbarrou nela, que olhou e sorriu. Ficou mudo, doido, apaixonado. Não conseguiu dizer palavra. Quando deu por si, já estava na plataforma, sem saber para que lado ia. Com cara de bobo alegre.


Foi subindo as escadas da estação, lembrando-se de cada detalhe dela. Imaginou-a de todas as formas possíveis: vestida, despida, de calcinha vermelha, preta, na praia, na banheira...


No caminho para casa, foi cantarolando aquele sambinha do Martinho de que tanto gostava. Já não se lembrava do Jair, da ponte, do carro. Só pensando nela.


Quando entrou em casa, encontrou um bilhete da Joana: “Oi amor! Fui ao mercado, volto logo”.


Foi para o quarto, espalhou as roupas e entrou no banho. Quando saiu do chuveiro, ouviu a chave na porta. Assim como estava, enrolado na toalha, foi para a sala e viu a Joana, chegando, cheia de sacolas. Nem esperou que ela as colocasse na cozinha. Abraçou-a e começou a despi-la. Ali mesmo. E, entre cenouras, pepinos e cebolas, comeu a Joana, no chão da sala. Só pensando nela.


Sandra Moss
26/08/2009




segunda-feira, 7 de dezembro de 2009


Textos de Vestibular


Aqui, estão o ERIC WILLEMSENS, a FERNANDA FARIAS, a FERNANDA CALDAS e o ÁLVARO FILOGÔNIO - alunos em 2008 e 2009. Pessoas muito queridas. Abaixo, um texto de cada um.


Artigo de opinião, referente à reportagem da Revista Veja, de Eric Willemsens

- Mudando com o mundo -


Na revista Veja do dia 18 de fevereiro de 2009, foi publicada uma reportagem sobre a juventude dos dias atuais. Dentre os assuntos abordados, estavam o relacionamento com os pais, os hábitos, a facilidade de lidar com aparelhos eletrônicos, as características... O texto apresenta uma série de argumentos que, coerentes para alguns leitores, são errôneos para outros.


Os jovens dos anos 90 são acusados de não apresentarem um caráter revolucionário, assim como ocorria com os das décadas de 60 e 70. O mundo, entretanto, sofreu uma série de mudanças nesses trinta anos, e os anseios e as perspectivas dos adolescentes também. Na época da Guerra Fria, a enorme tensão e a incerteza do futuro do planeta abalavam a todos. A juventude, então, manifestava-se intensamente toda vez que seus interesses eram lesados. O jovem mudou não porque se tornou individualista como alega a reportagem, mas por causa do novo contexto mundial.


Alguns argumentos, por outro lado, estão mais concretos e têm o poder de convencimento maior. Segundo a reportagem, com a presença da Internet, os jovens têm amplo acesso a informações; porém, eles não se aprofundam em nenhum tema. Tal situação, de fato, é verdadeira. Com centenas de informações, a juventude acaba por ficar meio perdida e, assim, informa-se superficialmente, na maioria das vezes. Algum aprofundamento é importante, pois faz o jovem raciocinar, possibilitando o poder de crítica.


A reportagem, em geral, coloca-se contra os jovens. Eles são mais criticados do que elogiados. O texto, no entanto, foi escrito por um autor que viveu a sua juventude em uma época diferente, quando as características da sociedade eram outras. O comportamento juvenil é extremamente influenciado pelo ambiente e pelo momento histórico. Sendo assim, ao criticar um jovem, deve-se, antes, perceber as influências que ele sofre dos adultos.




Artigo de opinião de Fernanda Farias


- O maior dos mitos -


Depois da última quarta-feira, dia 12 de agosto, dia em que ocorreu, na PUC, a palestra sobre felicidade e realização pessoal, parece que os alunos pararam para pensar nesses conceitos. Do bar às salas de aula, não se fala em outra coisa. Como aluna de psicologia do quarto período, levei em conta os diferentes aspectos desses sentimentos para criar um conceito próprio; afinal, felicidade se constrói de acordo com seus desejos e capacidade de realização.


Felicidade é um conceito que não se pode restringir ao plano dos desejos. Para isso, temos outra palavra: sonhos. Não pode ser definido como realização também, pois, se assim fosse feito, trabalho seria sinônimo de felicidade, e todos os profissionais exerceriam suas profissões com gosto. Não pode ser tão passageiro como alegria, feito que é um estado permanente, mas não eterno.


As pessoas fazem da felicidade um mito, como de fosse impossível, ou, no mínimo, muito difícil de se conseguir obtê-la. Alguns dizem até mesmo que, para a alcançar , deve-se passar por caminhos dolorosos. Discordo. Se felicidade é o prêmio por passar por sofrimento, ela transforma-se apenas em alívio. Concluo, então, que felicidade é algo pleno e puro. Como água e óleo, ela não se mistura à tristeza, raiva ou ódio. Deve ser construída e não encontrada: não se acha a felicidade em alguém, mas com alguém.


O importante não é procurar ou definir o conceito, mas reconhecer o que lhe dá origem. Existem, porém, aspectos fundamentais para se alcançar a felicidade: estar em paz consigo mesmo, amar e ser amado e ter uma profissão que lhe proporcione satisfação.





Artigo de opinião de Fernanda Caldas


- Tudo é Passageiro -


A partir da publicação de textos sobre a efemeridade no último número do jornal de nosso departamento de Filosofia, pude entender seu sentido quando se trata do ser humano. O homem, ao longo de sua vida, é rodeado de fatos e valores, que passam por um processo de mudança constante. Sendo assim, é possível perceber que tudo pode ser substituído e, por isso, estamos envolvidos em relações de superficialidade a todo o momento.


A cultura digital, assim como as questões éticas são exemplos da constante efemeridade que vivemos. Novas eras tecnológicas, a variação dos papéis sociais do indivíduo e o vocabulário moderno estão sempre sendo modificados e, desta forma, a humanidade é diretamente afetada. Sendo para melhor ou para pior, as mudanças são inevitáveis. O novo substitui o antigo na mesma proporção que o segundo foi descoberto. Isto nos leva a pensar que as relações que vivemos são superficiais, e a falta de tempo gera um acúmulo de tarefas que aumenta a cada instante.


Pode-se dizer que tudo é efêmero. As constantes mudanças ocorridas na vida de cada pessoa fazem com que nos tornemos passageiros metropolitanos, em constante movimento. Este movimento, por sua vez, é exercido com uma velocidade que provoca uma diminuição na profundidade do que está sendo transformado. Assim, estaríamos vivendo em um mundo onde tudo sofreria esse processo e, desta forma, a paisagem passaria quase em branco, sem detalhes, e o cidadão se tornaria um personagem.


Transitoriedade é algo inevitável, ainda mais quando se vive em um mundo tão globalizado e inovador. As tecnologias e até as questões individuais de cada ser não permitem que os fatos, os valores e as relações permaneçam os mesmos por muito tempo. Ser efêmero é ser realista, é ver e entender o mundo da maneira que ele realmente é. É necessário, no entanto, que haja um equilíbrio, para que nada passe adiante sem ser realmente percebido e compreendido.






Dissertação de Álvaro Filogônio Netto


- Arroz com Livro -


O povo tem fome em diversos sentidos. Uma dessas fomes é justamente da educação. Ás vezes, uma cesta básica não irá matar a fome de alguém determinado a mudar de vida. É necessário saciar esta gente através de outros alimentos.


Com certeza, a distribuição de cesta básica é importante; entretanto, o estímulo à educação é fundamental. Não apenas o governo deve enfrentar este problema, como qualquer cidadão precisa colaborar, recolhendo livros e entregando-os às crianças de rua. Dessa forma, a erradicação do analfabetismo vai ficar mais próxima de se tornar realidade.


Deter este problema, que complexas pesquisas e projetos tentam solucionar, é urgente. Pode-se começar, simplesmente, com a tarefa de ceder um livro a alguém disposto a aprender. Hoje, a média de livros lidos por ano cresceu consideravelmente em relação ao passado. A fatia da população que mais lê representa os jovens. Evidencia-se, então, que as mudanças já começaram a acontecer, e todos devem dar continuidade a ela, ampliando ainda mais os resultados.


A melhoria do sistema educacional só ocorrerá com a leitura. Esta pode chegar às mãos de um morador de rua pela ideia proposta no texto. Será sempre benéfico à sociedade realizar essas ações, pois todos só terão a ganhar com o desenvolvimento de cada cidadão do país.




quinta-feira, 26 de novembro de 2009


Poesia no Olhar



Meu pensamento está no seu olhar
Quando me nutre e me cala
Todo horizonte e todo o tempo.


As cores
As formas
As vidas.


Animadas por duas estrelas
Nossas estradas
Nossas retinas.


Quando é o pensamento?
No seu olhar
A eternidade.


Através do belo, a liberdade.
A força e a luz
De nosso espelho.



sexta-feira, 13 de novembro de 2009

> > TEXTOS DE AMIGOS > >

Eis alguns textos de amigos.



Vi Quirino – este belo personagem da Elvira T. dos Santos – nascer nos nossos encontros da Oficina da Palavra, já há alguns anos. O conto abaixo faz parte do excelente livro “3 Cantos – Contos”. Se quiser adquiri-lo, deixe um comentário. Elvira entrará em contato.



Usufruam!

O CORAÇÃO DE QUIRINO
Elvira T. dos Santos

O homem, a mulher, o menino. Desceram do bonde Malvino Reis com duas malas de papelão e andaram uns três quarteirões até que, como se tivessem ensaiado antes, pararam de chofre. Aí, Genésio – o homem – estendeu o braço direito, esticou o indicador decidido e, com certa solenidade sentenciou:


- Aquela é sua nova casa.


Se o corpinho de Quirino não estivesse tão dormente pelas horas infindáveis passadas em jardineira, trem e bonde, tudo em experiências primeiras, era possível que, vencendo a timidez, o menino saísse correndo na frente só para falar “eu cheguei primeiro!” como fazia em suas brincadeiras. Olhou o casarão ocre, sólido, majestoso, construído no final do século XIX, e fez lá sua avaliação, que não tinha serventia nenhuma, já que ele não entendia de arquitetura e nem decidia seu destino e, como se dissesse “estou pronto” apertou a mão da mãe.



Em poucos minutos atravessaram o enorme portão de ferro trabalhado por artesão competente e, em meio a uma algazarra infernal, iam tentando romper os círculos de curiosos que se formavam com rapidez impressionante querendo saber como foram de viagem, como era mesmo o nome do menino, quantos anos ele tem, por quê que ele não fala... Tanto perguntavam como informavam o que não era indagado: o quarto número 2 já foi alugado pra uma família de seis pessoas, vindas não se sabe de onde; ficamos dois dias sem luz; o marido da manicure apareceu de repente, deu outra surra nela e tornou a desaparecer sem dar satisfação a ninguém; a inquilina do 21 teve outra crise de nervos e foi preciso chamar o SANDU que levou ela na camisa de força e isso já faz dois dias; nasceu a criança da mulher do 31, que não cabe em si de contente; essa noite não se pregou olho neste pardieiro porque o morador do 15 resolveu tocar trompete outra vez, até as tantas, pensando que é artista... Também alguns ofereciam os préstimos que, pela hora que é devem estar com fome e eu tenho feijão cozido e se a gente se reúne em pouco tempo tem bóia; quando vi seu Genésio saindo de terno para ir esperar vocês na Central peguei a chave com ele, varri seu quarto, ajeitei o que pude e se mais precisar eu faço, que vizinho é pra essas coisas mesmo, embora nem todos mereçam. Trepado no muro um menino sardento atira pedras com estilingue e por pouco não quebra a vidraça da casa ao lado, o que seria uma pena e um grande aborrecimento, já que por qualquer dê-cá-uma-palha as pessoas que moram nela chamam logo a rádio patrulha e hoje não é dia disso porque além de ser domingo estamos todos muito alegres, que D. Idalina agora tem seu menino a seu lado e não precisa mais chorar pelos cantos nem na beirada dos tanques enquanto alveja as roupas das seis famílias que ajudam a inteirar o magro salário que seu Genésio ganha da Prefeitura para limpar tanto esgoto entupido. Alguém lembra que mesmo estando cansados é bom mãe e filho tomarem logo seus banhos antes que a água acabe, a quem Genésio responde que levantou bem cedinho e encheu alguns vasilhames, que precavido ele era, e banho é mesmo de balde porque os dois chuveiros nunca funcionam e não adianta reclamar, que o dono de tudo isso cobra bem caro da gente, mas conforto que é bom, nem sinal.


Foi difícil chegar ao que, certamente, algum dia, foi o que se chamava aposentos de alguém muito rico, mas que hoje é apenas o quarto número 11, onde moram Genésio, Idalina, agora mais o guri. Na porta a romaria foi se dispersando, que lá dentro não caberia tanta gente, e só ficou com o casal e o menino a zeladora do cortiço chamada dona Francisca, que pouco mais se demorou. Foi só o tempo de desarmar sua cara de autoridade, pousar a mão no ombro de Quirino e recomendar que ele não se misturasse com os pestes do 4, do 7 e do 18 e já seria meio caminho andado para ter a amizade dela. Que não desse ouvidos quando o peixeiro do 17 falasse que ela odeia crianças e que só conversasse o indispensável com a filha da gorda do 30, que ela, a filha, além de desmazelada sabe tudo que não presta. No mais, era só ser obediente a ela, à sua mãe e ao seu novo pai, que eram pessoas decentes e queriam apenas seu bem, disso tivesse certeza. E sem mais se foi, deixando os três na necessária privacidade naquilo que, por ser tão pobre, menos lar não era.


Isso tudo faz uma semana, o que para Quirino não tem a menor importância porque, tendo ele só sete anos, sete dias passados não fazem falta nenhuma. Já para Idalina o mesmo não se aplica. Não por velhice, é bom que se diga, mas por preocupações maiores. Desde que chegou de viagem com o seu filho em triunfo, vem estudando o comportamento do companheiro para sondar como ele está reagindo à presença de mais um em casa. Tá certo que ele chegou pra ela um dia, sem mais avisos, e disse que estava pronto a cumprir a palavra empenhada, que era providenciar pro menino vir pro Rio. Isso era coisa acertada desde os primeiros dias do namoro dos dois. Na porta da casa da patroa Idalina fora bem clara: “vim parar aqui tão longe buscando jeito de ter recurso pra criar meu filho comigo. E o homem que me quiser tem que querer ele também. Se não, nem adianta botar casa pra mim.” No mais, foi tudo muito rápido. Poucos dias depois ele veio com a novidade do quarto alugado na casa de cômodos pros lados do Andaraí. Ela deixou o emprego, que ficou longe, e pela obrigação de dormir todos os dias com o companheiro, que tinha muitos anos mais que ela, exigindo atenção redobrada. As coisas foram se ajeitando, até que ele chegou, maroto, trazendo dinheiro emprestado, que era a conta certa da viagem. Agora é que são elas, que criança sempre atrapalha, ainda mais num quarto só, com a vida tão apertada. Por isso esses sete dias para Idalina foram de sentinela, pra ver se surpreendia Genésio com ares de antipatias. Pura perda de tempo!


Genésio todo dia dava um jeito de puxar conversa com Quirino, fazer agrado, mostrar que estava gostando. Nem parecia que tivera outros filhos, que agora eram adultos e moravam do outro lado do seu primeiro casamento. Isso Idalina pudera constatar. Até sentia-se recompensada por tudo que sofrera e por acordar às cinco horas da madrugada para pegar os tanques livres e lavar o roupeiro da freguesia. Se levantasse mais tarde, era confusão na certa. Não ia faltar quem dissesse que os tanques eram pras roupas dos moradores, que tinham preferência. Já bastavam as indiretas por causa do gasto de água, que as caixas não davam conta de tanta necessidade e igual desperdício.


Em pouco tempo Quirino aprendeu a buscar e entregar as roupas que a mãe lavava e fazia pequenos favores pra vizinhança o que, não raro, lhe rendia algumas gorgetas. Quando não tinha ocupação gostava de conversar com os filhos dos portugueses do 5, que haviam chegado ao casarão uns poucos meses antes dele. Tinham em comum o fato de falarem diferente dos que viviam ali há mais tempo. Quirino, com seu sotaque caipira, de vez em quando usava palavras desconhecidas da cidade, assim como os dois irmãos, que tinham os seus pois pois. Talvez por isso se dessem tão bem os três “estrangeirinhos”. Ainda os aproximava o fato de terem vindo de lugares tão diferentes da realidade do cortiço – tinham lá suas nobrezas. Fernando e Fátima contavam-lhe como tinha sido a viagem de navio, e o que mais o intrigava eram os onze dias sem ver a terra de perto sendo que, na maioria do tempo, não a viam de jeito nenhum. Pelo que podia deduzir, se os irmãos não mentiam, o mundo era muito grande e tinha água demais. Não compreendia bem a mágica de tanta gente viajando dias e dias em cima de tanta água. O que conhecia eram canoas pequenas que transportavam os caboclos, e a maior água que vira foi a do Rio das Velhas, quando sua mãe foi buscá-lo em inesquecível viagem, cuja pior parte fora a de jardineira, que atolou muitas vezes no lamaçal do caminho, tendo os pagantes que saltarem para ajudar como pudessem. Quirino foi mais feliz, ficou dentro da jardineira, que menino não pode nada.


Às vezes parecia meio triste, mas vai ver era a falta de costume de viver naquela colmeia de gente. À noite seu coração se apertava. Depois que a mãe puxava a cortina de chitão estampado que separava a cama do casal do resto do cômodo, o sono não vinha logo. Vinham eram lembranças da vida na roça, das brincadeiras naquele mundão de pastos, numa fartura sem fim. Tinha nos ouvidos o barulho de rios, moinhos, carroças, pilão socando, taquara rachando ao sol, mamona seca estalando, sapo no brejo, mugidos, latidos agoniados, chuvas na cumeeira, passarinhos nas goiabeiras... Uma sinfonia sem maestro, que disso quem cuida é Deus. Dorme, Quirino, dorme, que ninguém sabe ao certo que sensações, que lembranças, são o passado de um menino.


Aos poucos foi conhecendo melhor as pessoas do casarão. No 6 morava um espanhol que bebia nos fins de semana, dava alterações e proibia a mulher de conversar com os vizinhos. Por isso ninguém podia oferecer consolo quando ela chorava sua má sorte e sua saudade da Espanha. No 20 morava uma família enorme, de um chofer de táxi, que parecia ter o rei na barriga por causa do Oldsmobille. Todo dia, quando chegava da praça, o homem polia aquele carro que, de tão preto, luzia. Tinha Domingo de sol, quando quase todo mundo se juntava em baixo das mangueiras pra refrescar o calor, que ele pegava o táxi com a mulher, cinco filhos e a cunhada, e ia para a Ilha do Governador tomar banho de mar. D. Francisca tinha um filho solteirão que ajudava na limpeza, de nome seu Agenor. Amarelo, caladão, seco, andava arrastando as chinelas como se não suportasse seu peso. Era o preferido da meninada! Um dia seu Agenor se lavava no banheirinho do pátio e os capetas bateram tanto na porta e fizeram tanta chacota, que ele não aguentou: saiu pelado correndo atrás da turba feito um bruxo possesso. D. Francisca passou boa parte do resto dos seus dias tentando arrumar alguma salvação para a dignidade do filho. Bem faziam os seis nordestinos do 13 que deixavam as peixeiras sempre à vista para alguma emergência e garantiam, assim, um tratamento sempre respeitoso da raia miúda e, a bem da verdade, da graúda também, porque ninguém é suicida. Ninguém, falando de modo geral, porque Deusdeth, do 26, bebeu formicida com guaraná em dia de grande desgosto. Todos sabiam qual era seu emprego noturno, mas nunca fora vista nas redondezas com insinuações nenhumas com homem conhecido ou não. Não incomodava em nada. Depois daquele dia a pobre definhava a olhos vistos. Antes tivesse morrido.


Seu Genésio pouco sabia de estudo mas, à noite, mesmo cansado, sentava ao lado do menino para acompanhar no dever de casa. Sempre se saía com alguma coisa como “sua letra tá melhorando”, “tá caprichado”, “vai acabar sendo escriturário”. Idalina olhava enternecida e passava a mão na cabeça do filho, escondendo os olhos molhados.


Quirino passou anos observando a cara das pessoas, olhando no fundo dos olhos delas, ganhando intimidade, criando uma cumplicidade discreta que não se expõe com palavras. Ficava horas e horas prestando atenção na rotina daquele mundo tão sem horizontes, registrando a vida daquela gente como se fosse ele uma filmadora invisível. O que não sabia é que aqueles tipos, com suas alegrias e mazelas, invadiam seu coração de forma irremediável. E o coração de Quirino era uma vasta pradaria onde qualquer emoção vingava multiplicando sementes. Por isso seus sonhos eram cada vez mais complicados para seu entendimento tão vago. Viajava no carro preto por terras de sua infância; tomava banho de rio segurando a mão de Fátima, observados por D. Francisca com os seus olhos de cabra; Deusdeth fazia doces em tachos de cobre com grande boca vermelha e vestidinho apertado; o menino sardento puxava sorridente uma cortina florida e no palco surgia uma morena lasciva, tocando castanholas, escondida do marido bêbado, que dormia, banhado de suor, sob frondosas mangueiras, enquanto galos cantavam e seu Agenor, redimido, abria as porteiras por onde as vacas fugiam; seu Genésio aparecia na estrada empurrando a jardineira onde viajava todo o cortiço pro interior de Minas, que nunca fora tão Gerais – tudo ao som de um trompete que varava as madrugadas embalando um menino enquanto sua mãe descansava no alpendre de uma fazenda.


Tinha Quirino uns doze anos quando chegou a notícia que o casarão ia ser demolido e que todos tinham três meses para arrumar vida nova. Três meses! Nunca houve tempo de tanto alvoroço e igual tristeza. Era gente pelos corredores, no pátio, na grande cozinha, nos tanques, sob as mangueiras, por todo lado, a qualquer hora, fazendo levantamento das suas possibilidades de sobrevivência, tecendo seus comentários, desfiando seus rosários de penas, ou mesmo rogando pragas.


Mas o que parecia sem remédio aos poucos se remediava. E até que não foi tão difícil pro alfaiate do 8 conseguir uma meia-água nos fundos da casa de um freguês, no bairro do Engenho Novo, que nem tão longe não era. Daí em diante começou a ser frequente as pessoas carregarem seus pertences para a calçada e irem acomodando tudo, como desse, em velhos caminhões de frete ou no que pudesse substituí-los. Depois de demoradas despedidas, lá ia mais uma família com os colchões descobertos, com os fogões JACARÉ, suas trouxas em cima dos poucos móveis – enfim, com suas tripas à mostra.


Desse modo chegou a vez de Genésio, Idalina e o menino dos dois – nem mais tão menino assim. A única diferença é que os moradores de outras casas, sempre contemplativos, nesse dia vieram dar adeus à Idalina, lamentar que suas roupas ressentiriam a perda, ou abraçar Quirino que, com um nó na garganta, não dizia mesmo nadinha. Pouco depois estava na carroceria do caminhão junto com os bens do casal, sendo ele mesmo mais um. E seu coração parecia não caber mais sentimento quando seu Agenor se destacou entre os demais e agora, despido do pudor de ser ridicularizado, com gestos teatrais, gritou bem alto quando o caminhão se afastava:


- Vai, Quirino, e trata se ser feliz! Nunca arranque do peito a lembrança de nossa gente!



- Ô, meu Deus, logo seu Agenor falando uma coisa dessas...





Ana Hertz foi minha companheira de infância e adolescência no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Recentemente, veio fazer a Oficina da Palavra e se descobriu escritora. Publicou o livro “e, enquanto espera... divirta-se!”. Abaixo, você terá oportunidade de conhecer uma cronista de mão cheia! Entre no seu blog e confira: http://dandopalpite.blogspot.com/.


SOBRE A BELEZA
Ana Hertz
A tela, em branco, e não sei como vou começar. Difícil escrever sobre a Beleza, que todos buscamos a cada momento da vida. Como falar nela, quando tudo em volta conspira contra a paz, a alegria, a justiça? Esforço-me para deixar de lado esse mundo confuso e violento e percebo, na alva página virtual, os primeiros flocos da neve, caindo mansamente sobre a floresta, um manto a cobrir as flores que resistem ao rigor do inverno. Os raios de sol se despedem e levam junto sua luz dourada, abrindo espaço para a noite que se impõe, magnífica. Fecho os olhos e abro a alma para a paisagem que se derrama pela mesa de trabalho, permitindo que a lua se afirme, com delicadeza, no escuro daquele céu imenso. Como num passe de mágica, volto no tempo e vejo a lua espelhada nas águas da lagoa, em cujas margens caminho extasiada com a imagem do Cristo, bem lá do alto, a abençoar a cidade que, atenta, olha a vida transbordando de seus poros.

O telefone toca e me traz de volta, desfazendo no ar o pôr-do-sol que começa a se delinear em meu espírito, com raios fazendo, das areias do Arpoador, um chão de pedrinhas brilhantes. Um amigo pede um livro sobre Gandhi. Deixo o teclado e vou em busca da obra sobre o fascinante indiano. Sentada na escada de metal, descubro, naquele rosto magro, moreno, naquela vida, a extraordinária beleza de quem fez do próximo seu objeto de amor.


Enquanto passeio pelas estantes que abrigam tantos livros queridos, esbarro no song-book de Chico Buarque. Suas páginas amareladas pelo tempo trazem de volta as mais simples palavras de nossa língua, que falam de quem morreu na contramão atrapalhando o tráfego, do feijão que ela faz todo dia sempre igual, da Maria, do Nicanor, da gente humilde com cadeiras na calçada... E Chico também avisa que vai passar, nessa avenida, um samba popular... Delicio-me com cada verso, com cada refrão que insiste em soar baixinho... Desligo-me do mundo e mergulho na beleza dessas letras incomparáveis. O tempo vai passando, até que a música que vem nem sei de onde me traz de volta. Parece Edu Lobo... Será Ponteio?


Desço da escada e, no cantinho do quarto, com um olhar, abraço a pilha de CDs, num feliz reencontro com Toquinho, Vinicius, Mozart, Beethoven, Gershwin. Como uma criança em noite de Natal sem saber qual presente vai abrir primeiro, fico ali, extasiada com os acordes que se escondem nas embalagens coloridas. Posso ouvir cada nota, cada tom e semitom... apenas com a alma.



Dizem que a beleza está no olho de quem vê. Também no coração de quem ouve, na mão de quem trabalha, no afago de quem ama... Encontrei a beleza em quem pregava a paz baseada na liberdade e na igualdade de todos os homens e nações, naquele que juntava palavras e dizia que ia fazer um samba para a nata da malandragem e que, num momento de grande inspiração e de desespero cívico, clamou aos céus: “Pai, afasta de mim esse cálice de vinho tinto de sangue”. Também a senti no canto da cigarra que anuncia o verão, nas palavras amorosas do amigo querido, no sorriso da mãe ao beijar o filho que acaba de nascer, no médico que vai para bem longe brigar com a morte e a desesperança, onde elas insistem em ficar...

ernando Pessoa não tinha ilusão e, em verso, disse que a própria idéia em nós dessa beleza, um infinito de nós mesmos dista. Mesmo assim, ouso dizer que posso, a cada minuto, ouvir, sentir, cheirar e tocar a Beleza, disfarçada no sorriso de uma criança, na flor que brota, teimosa, na terra sofrida, ou na folha em branco, que se oferece, despudorada, ao poeta para que ele, ali, possa derramar sua alma.


 



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