segunda-feira, 22 de novembro de 2010

São jovens entre 15 e 17 anos. Cursam o segundo ou o terceiro ano do segundo grau de escolas da zona Sul do Rio de Janeiro. Buscam uma forma de colocar suas ideias, opiniões, certezas e incertezas, sem ferir as limitadoras regras do Vestibular, já que seu primeiro objetivo é a boa redação no Vestibular. Logo compreendem, porém, que escrever bem é um ganho para a vida toda. No ano seguinte, vem a redação na Universidade e, logo após, o texto que, corriqueira ou eventualmente, precisarão redigir enquanto profissionais.

Nas atividades que realizo com estes jovens, quase todos atingem o que buscamos desenvolver.

Prazer de SER pela escrita. Autoestima.

Prazer de ouvir o outro e ser ouvido, exercendo a alteridade com admiração e respeito. Compaixão.

Prazer de refletir fora dos códigos do já dito, do já pensado, do que o sistema espera deles. Criatividade.

Prazer de poderem ser espontâneos, de poderem pensar por eles mesmos, de descobrirem, enfim, que são aquilo que sentem, pensam, dizem ou escrevem. Autoconhecimento.

Eis textos de alguns deles sobre temas diversos.

Apreciem.

Ana Zanelli

55 21 9761-5596


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Paula Morand


Beleza na vitrine

(dissertação)

O mundo capitalista da atualidade criou, entre outras modificações, a necessidade da propaganda, da venda, do consumo. A população é diariamente bombardeada por “marketings” que a induzem a beber tal refrigerante, possuir o celular mais avançado, comprar a roupa da moda. Com isso, são construídos padrões comportamentais e, para estar em consonância com o século XXI, cria-se a necessidade de ceder às tendências.

A formação de estereótipos gera um consenso sobre o que é belo e busca homogeneizar esse conceito. O corpo torna-se, assim, parte desse conjunto estético, ideal, sendo mais um objeto de “venda”. O crescente sucesso de academias de ginástica, produtos para emagrecer e anabolizantes, por exemplo, pode ser explicado por essa busca incansável pela beleza.

Homens supermusculosos e mulheres macérrimas são postos como modelos de beleza. Estes padrões, fora da realidade da maioria das pessoas que possuem as mais diversas características físicas, fazem com que muitas arrisquem suas saúdes para “comprarem” o corpo perfeito. A “beleza universal”, portanto, deixa de ser um simples conceito com o assentimento da maioria, como o “belo” definido por Kant, e passa a associar-se a metas de vida e sofrimento quando relacionados ao físico.

A beleza deve assumir, então, um caráter mais subjetivo em que cada indivíduo defina como belo aquilo que o agrada e o atraia. Neste aspecto, é necessária uma atitude anticapitalista para que o corpo ideal e o belo, em qualquer situação, deixem de ser produtos uniformes e estáticos para se tornarem conceitos individuais e mutáveis.



João Vicente Tinoco

Liberdade

(dissertação)

Após quase vinte anos vivendo uma ditadura, os brasileiros sabem diferenciar quando estão e quando não estão livres de algo. O conceito de "liberdade", porém, ainda é muito discutido, assim como seu significado prático. É possível que todos tenham liberdade? Significa fazer o que quiser? Anarquia? O que, afinal, é "liberdade"?

O primeiro passo para compreender o sentido de liberdade é entender o que é a falta dela. Uma pessoa que não é livre é uma pessoa comandada por ou dependente de algo ou alguém. Não possui livre arbítrio. Neste caso, a liberdade, portanto, é o poder que se tem de fazer escolhas e o que parecer mais conveniente.

Costuma-se associar, irrestritamente, a liberdade ao bem de uma população. Essa associação, porém, nem sempre condiz com a realidade. Nem sempre a liberdade incondicional é vantajosa para a maioria, pois, às vezes, ela garante a uma pequena parte da população o poder de explorar uma parte maior, como no Liberalismo econômico. É por essa razão que existem governos controlando o povo; existe a legislação para controlar o governo; e existe a democracia, que garante ao povo a liberdade de eleger seus legisladores.

A liberdade é o direito que uma pessoa tem de escolher o que fará. Ela sempre é boa para todos, mas deve ser regulada, a fim de evitar que alguém opte, em sua liberdade, por agredir o próximo. Para isso, existem as regras e leis. A legítima forma de liberdade é a democracia, pois ela garante ao povo o poder de escolher como e por quem a liberdade será regulada.

Marina Cardoso

Grades Invisíveis

(dissertação)

Entende-se como livre-arbítrio o poder de escolha, preferência e decisão de cada pessoa. Fator crucial para a formação da individualidade. Proporcionam-se, a partir da singularidade do indivíduo, diferentes formas de pensar e interpretar a vida.

A liberdade pode ter diversos significados; por exemplo, para uma criança, pode significar nadar até o fundo em uma piscina; para um adolescente, a saída da casa dos pais; para um adulto, uma viagem para o exterior, sem nenhuma preocupação. Em todos esses significados, há uma relação de dependência com os fatores do mundo. As escolhas pessoais estão diretamente ligadas às oportunidades que são apresentadas. É o fator externo interligado com o fator interno.

Muitas vezes, o fator exterior interfere tanto na vida da pessoa que a visão de liberdade torna-se efêmera. Como acontece, por exemplo, com o aumento da busca por condomínios fechados, devido à intensificação da violência. Tem-se, portanto, uma impressão de liberdade em uma verdadeira prisão de luxo. A constante acomodação e a falta de perspectiva – vivenciada pela maioria dos brasileiros – vão de encontro à essência da liberdade, que significa a busca pela melhoria de vida, a ascensão social.

Dessa forma, fica evidente que todos os fatores externos influenciam a concepção da ideia de liberdade, pois o mundo mostra-se muito vasto e influente. Necessita-se, assim, da falta de conformismo e acomodação das pessoas e da busca por um objetivo. A grandiosidade da alma vai muito além de delimitações de qualquer espécie.

Tomás Osório

Poder ou não, eis a questão

(dissertação)

A liberdade pode ser classificada nos mais vastos aspectos: de pensamento, de expressão, de movimento, de opinião e até econômica. É um conceito diretamente relacionado ao poder ou não poder assumir determinadas atitudes. Uma pessoa poderosa, dessa forma, é aquela que possui mais liberdade para fazer o que bem quiser.

A liberdade não é sempre positiva: o homem pode tornar-se destrutivo – poder exige responsabilidade. E esses seres responsáveis tem sido a solução para um planeta cheio de corrupção e conspiração. Não que não haja pessoas de responsabilidade no mundo: não há pessoas com responsabilidade, liberdade, poder no cenário político mundial. A falta de discernimento também atinge a Economia, como a atingiu, em 1929, o liberalismo econômico.

Ela também é muito relacionada à felicidade do ser humano, porque um homem feliz é aquele que é “livre” de problemas. O mais impressionante é que a sociedade não percebe que ela ainda vive presa ao mundo pequeno de moda, beleza, dinheiro: isso não é liberdade. E, desta vez, não haverá Princesa Isabel de caneta tinteiro para salvar o homem da alienação, da detenção de sua consciência “antiliberdade”.

O ser humano vem, progressivamente, agindo como um primata, irracionalmente. É necessária a elevação do espírito e da consciência humana para que ele possa, então, chegar a um conceito de real liberdade. Deste modo, acabar-se ia com o regime de hipocrisia e falta de responsabilidade praticada pelo homem moderno.

Lucas Von Lachmann

Que Caminho Tomar?

(artigo de opinião)

Desde que me lembro, tive todos os meus passos, por assim dizer, predeterminados: creche, escola, faculdade... Tudo para ter um bom futuro. O que me parece uma grande hipocrisia é que aqueles que mandam eu me dedicar às minhas obrigações muitas vezes se referem à sua juventude como os melhores anos de suas vidas... e o quanto rebeldes eles eram...

É verdade que os tempos mudaram, e ter estabilidade financeira se tornou mais difícil, principalmente pela maior competitividade no mercado de trabalho. E é exatamente por isso que, nesta época de nossas vidas, devemos ter o máximo de experiências possíveis até mesmo para descobrir o que queremos. Nem todos foram destinados a trabalhar em salas fechadas, sentados o dia inteiro; porém, amedrontados pelas condições de vida dos pobres de nossa sociedade, submetem-se a uma vida cheia de obrigações e vazia de felicidade.

O objetivo de enriquecer é para poder comprar felicidade; entretanto, em nossa sociedade, o preço da felicidade está caro e parece só ter um jeito de conquistá-la, com exceção dos prodígios esportistas. Na educação, o investimento estatal é muito pequeno, o que acarreta o desnivelamento com as instituições particulares. Deste modo, o mercado de trabalho está sempre desfavorável para aqueles com más condições financeiras. Por fim, mantém-se a ordem social desigual em que os ricos ficam mais ricos enquanto os pobres cada vez mais pobres.

Que sociedade é esta que só beneficia aqueles que vão pelos caminhos instituídos? E por que valorizar a qualidade de ser rico? É muito ruim crescer pensando que, para ser feliz na vida, só como engenheiro, advogado, médico. E é exatamente esse paradigma que precisamos mudar: buscar a felicidade desvinculada do dinheiro, pois, muitas vezes, esses dois são confundidos, o que leva a um falso estado de felicidade.

Tomás Osório

A Divina Intervenção

(dissertação)

Uma nova espécie de seres humanos está surgindo no planeta Terra. Essa evolução, porém, não se encaixa nas teorias mendelianas e modernas de mudança de um perfil populacional. Os novos homens, chamados de “divinos”, vêm se tornando cada vez mais notáveis no dia a dia. São seres muito evoluídos em uma consciência diferente, algo bastante válido para a salvação da espécie humana, e cada vez menos raro.

É evidente que o homem sempre viveu sob a pressão feita pela palavra “fim”, e nada aconteceu. Agora, no entanto, é mais que notável: algo deu e está dando muito errado de alguns anos para cá. O pior: tem gente adorando terremotos e afins pelo mundo, como é o caso da mídia, por exemplo. Tal constatação prova que ainda há muitos homens e mulheres redondamente enganados, alienados de consciência. Estes homens, atualmente, estão no controle da maioria dos cargos políticos e na chefia de empresas. Os menos afortunados em consciência e recursos materiais procuram matar, roubar, fazer qualquer coisa pelo dinheiro.

Ao contrário das gerações passadas que, em maioria, contribuíram para o arrocho do planeta, as gerações da década de noventa para cá têm algo mais para mostrar. Os jovens atuais se encontram muito preocupados com o destino da Terra, da espécie humana. E não é só essa preocupação que justifica sua evolução. Também há algo inexplicável, como um encanto, em seus olhares. Há quem diga que o ADN humano está se alterando, está transcendendo. É mais que necessário a nova geração manter-se como moderadora do Estado.

Dessa vez, essa mudança no perfil político da sociedade não será dolorosa. Uma era de paz está por vir. Ainda é requisitado, no entanto, que todos cooperem, ajudem, procurem elevar a sua consciência como muitos estão conseguindo. A nova dimensão, o novo jeito de pensar, agir, existir, cada vez se aproxima mais. Muitos ainda podem se salvar.

Marcelo Fraiha

A Curiosidade Quebrando Barreiras

(dissertação)

A curiosidade humana nos remete, cada vez mais, estar à procura de informações, conhecimento em geral. Por isso perguntamos sobre tudo que encontramos no mundo, em busca de justificativas para explicar o que veio antes de nós e, assim, compreender o nosso propósito.

A longa duração de certas realidades se dá por meio de indivíduos que, cegamente, sem saber por quê, continuam a praticá-la sem se perguntarem, por exemplo, por que existem pessoas pobres e pessoas ricas. Por que discriminamos e condenamos certos atos? Isso tudo leva a uma certa alienação em que não se deseja enxergar nem refletir.

Há também as ideias utópicas de mundos perfeitos em cada um dos indivíduos pensantes, como um mundo sem fome ou sem diferenças sociais. Certamente, o mais perfeito deles seria aquele em que todas as pessoas fossem inteligentes a tal ponto de não praticarem nenhum mal aos seus semelhantes e também a nenhum outro ser vivo. Tal comportamento modificaria, assim, tudo o que conhecemos hoje.

Sabemos que sempre haverá fatos ruins e bons, porque tudo assume um outro sentido quando se muda de ponto de vista. Sabemos também, entretanto, que sempre existirão os curiosos e os sedentos por informação. Embora hoje representem a minoria, a força deles já é notável.

Guilherme Cherman

A Terra está parindo o novo humano divino

(dissertação)

Embora ainda haja muitos problemas com o mundo, é fato que, ao longo das últimas décadas, o ser humano vem profundamente melhorando seu comportamento. Esse fenômeno pode ser observado em várias áreas, como no relacionamento do homem com outros homens e com o meio-ambiente.

No início do século passado, por exemplo, o planeta foi quase destruído por guerras mundiais e ditadores como Hitler e Stálin. Ao longo do século, o homem foi percebendo os erros que cometeu. Hoje, o número de conflitos é, embora grande, muito menor. Além disso, a democracia liberal já está presente em quase todos os cantos do mundo.

Quando o assunto é o meio-ambiente, o homem também vem evoluindo. Todos sempre souberam que a espécie humana, desde a Revolução Industrial, vem destruindo a fauna e a flora do planeta. Mas é só desde as décadas de 70 e 80 que o movimento ambientalista realmente passou a existir e influenciar a sociedade. Hoje, há um enorme número de pessoas agindo para reverter os danos causados à natureza e combater as perigosas mudanças climáticas.

Não há dúvida, portanto, que o homem vem evoluindo muito nos últimos anos. Sua ética vem aperfeiçoando, seu caráter melhorando. Esse novo homem – o novo humano divino - torna possível o surgimento de um mundo melhor, onde todos possam viver uma vida decente, com respeito e alegria.

Marcelo Sparano Campos

UMA PRISÃO INVISÍVEL

(dissertação)

Em um mundo capitalista, as pessoas vivem em uma prisão invisível gerada pela padronização do estilo de vida. Esse novo estilo de vida é baseado em um capitalismo que impõe o que as pessoas têm que vestir, comer e até dizer. Elas, porém, não percebem que estão vivendo em uma prisão. Elas não percebem que perderam a sua liberdade.

Uma das características do capitalismo é a obsolescência planejada que ocasiona a baixa durabilidade e a necessidade da reposição de produtos. Esses produtos são apresentados ao consumidor pela mídia que, por sua vez, manipula as pessoas, fazendo-as pensar que, para se sentirem bem consigo mesmas é necessário a obtenção desses novos produtos. Se as pessoas não viverem de acordo com a tendência, elas sofrem exclusão e preconceito, e a exclusão e o preconceito são conseqüências do novo estilo de vida da sociedade moderna. Essa mentalidade é a característica principal dos prisioneiros da prisão invisível. Eles perderam a liberdade ao viver de acordo com tendências, tornando-se escravos de um capitalismo selvagem.

Os prisioneiros não têm liberdade; porém, eles pensam que têm. Podemos perceber isso no dia-a-dia das pessoas. Elas têm a opção de mudar de vida, mas preferem deixar as coisas do jeito que estão por ser mais cômodo e menos trabalhoso. Ou até por pensarem que uma pessoa não faça diferença em um mundo habitado por seis bilhões que preferem não fazer nada para mudar. Com isso, podemos perceber que a liberdade de uma pessoa é algo ilusório e, na verdade, vivemos em uma prisão invisível.

O primeiro passo para conquistar a liberdade é perceber a prisão em que não podemos usufruir do que realmente somos. O segundo é começar a viver tendo como base a sua ideologia pessoal, e não, a do capitalismo que nos manipula diariamente. Precisamos ter a coragem de lutar pela liberdade para poder transformar o mundo em um lugar melhor para se viver.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

A menina que tinha sede


Jussara Olinev é atriz, professora e, agora, também escritora. Seus textos revelam um imaginário fértil e uma postura criativa diante de suas personagens. Tocam o sagrado da vida. Confiram.


A menina que tinha sede

Jussara Olinev

Era uma vez uma menina que sonhava. Sonhava tanto que se esquecia de viver.

Sua mãe, já bastante preocupada com tamanha excentricidade da filha, não se cansava de dizer:

- Minha filha, pare um pouco de sonhar e viva!

A menina, por sua vez, sempre respondia:

- Ah, mãe... O sonho estava tão bom que eu me esqueci de viver!
E assim foi durante anos e anos...
No dia em que completaria 15 anos, a menina sonhou estranho... Uma mulher, enrugadinha, enrugadinha, feito terra de sertão, dizia para ela que estava chegando o dia em que ela começaria a sentir muita sede. Uma sede tão intensa que nem toda água do mundo nem lágrimas de mãe, poderiam saciar. Apenas uma xicarazinha e uma nascente de lembrar poderiam lhe ajudar!

A menina ficou cismada... A cisma foi crescendo, crescendo tanto que ela não mais sonhava, tampouco vivia e de nada se lembrava! Então se esqueceu da cisma, esqueceu-se da velha; esqueceu-se de quem era ela!

Chorou. Isso ela conseguia! A menina chorou tanto que se desidratou, e a sede, finalmente, ali chegou!

A avó vinha com água; os tios, com leite. O pai gritava: “Tragam sucos!” A mãe, desesperada, chorava, e a menina que tanta sede sentia, mas que de tudo se esquecia, acabava não bebendo nada.

Uma vizinha chegou com o Padre, a professora trouxe o médico; os ventos, a curandeira, mas tudo o que conseguiram, apesar de todo o esforço e cuidado, foi um suspiro comprido da menina com sede e que de nada se lembrava!
Na sala, um burburinho... Pessoas falavam, outras choravam, algumas até gritavam! E todas elas se esqueciam da menina que, dali, afastava-se.
Afastava-se? Mas... para onde?
A menina também não sabia! Apenas seguia e imitava uma pequena borboleta que ali passeava. Cheirou os perfumes de todas as flores de todos os lugares! “Que incrível! Nunca vivi ou sonhei algo tão belo” – sentia ela! Sabendo que logo se esqueceria daquele momento, a menina – esquecida da sede que sentia – quebra uma pequena xícara que estava – mas não se lembrava o porquê – em suas mãos. Guarda os cacos num bolso e segura um. Faz o desenho do momento de que ela não desejava se esquecer e guarda o caquinho no outro bolso.
Que sede!! Ela não se lembrava, mas o seu corpo gritava! Avistou, então, um peixinho que brincava num rio próximo. Sem questionar, seguiu as ordens do corpo, mergulhou no rio... “Hum, que gostoso!!” E com o peixinho travesso pulando, nadando e brincando, conheceu o mundo todo! “Quantos lugares bonitos! Quanta gente diferente! Não sei se é o meu esquecimento... ou se realmente é um fato... mas algo me diz, fazendo cosquinhas nos ouvidos, que eu nunca havia sonhado, vivido ou pensado tantas alegrias!!”. Temendo o esquecimento de momentos tão fantásticos, retira um caquinho do bolso, faz o desenho do povo e dos lugares visitados.
De sede em sede e de vida em vida, sonha os desenhos de todos os caquinhos.
Com o corpo cansado e a mente esquecida, a menina senta-se embaixo de uma grande árvore, sob um céu muito rosado.

- Que lugar é esse? Será sonho? Um mundo encantado?

Não sabia! Apenas sentia que tudo aquilo que via era o encontro do céu com a terra. Ao se levantar para apreciar o lugar, caquinhos caem no chão. “O que será que eles são?”. Usando uma massa estranha – um tipo de barro ou argila – a menina cola os caquinhos... “Uma xícara?! Mas é tão esquisita!”. Começa então a cismar! A cisma foi crescendo, crescendo tanto que a sede foi voltando. Avista uma nascente.

- Nossa! Que diferente! A água brota colorida!

Não se lembrava de nada, mas de sede o corpo berrava! Pegou a xícara estranha, até então sem serventia, encheu com a água colorida e regou seus lábios rachados... Seu corpo todo florescia, mas o que não percebia é que agora ela se lembrava e nunca mais se esquecia!

Voltou feliz para casa! Agora sonhava e vivia... vivia e sonhava... E de tudo se lembrava e de nada se esquecia!

Chegou a casa, e não havia ninguém! “O que terá acontecido? Não me deixaram um aviso?...” Correu para o quarto e tudo estava em seu lugar... Guardou a xícara no armário e sentou-se na penteadeira. Olhou-se no espelho... Seus olhos ainda eram os mesmos... O seu rosto, outrora liso e faceiro, agora é todo desenhado e sabido! Desenhado como os cacos da xícara estranha, colados com uma massa esquisita, revelando toda uma vida vivida e sonhada... Completa e profunda, que nunca mais será esquecida!


As águas

Ângela Moss de Sá freqüentou a Oficina ainda no seu início, nos idos da década de 1980. Tomou consciência da sua função de escritora. Publicou dois ótimos livros de conto. No excelente – “De que lado estás?”, de 1998 - há também textos produzidos na Oficina. No segundo livro, a confirmação da bela escritora que é a Ângela: “Ensaio de Afetos”, Aeroplano Editora, 2004. Constância Lima Duarte – especialista em Literatura de Mulheres – deixa claro, na introdução, que estamos diante de uma grande escritora: “A impressão que permanece quando terminamos a leitura deste Ensaio de Afetos (e mesmo do livro anterior) é o de termos realizado um sólido mergulho em direção aos mais profundos alicerces da alma feminina. (...) Como Clarice, Ângela desdobra a cada página suas personas e parece encarar a vida como um enigma, que, como tal, urge decifrar.”



As águas


"Sorria facilmente e o sorriso parecia afastá-la.”J.L. Borges.
“O livro de areia”

Há certas coisas que têm o poder de devolver pedaços de vida. São coisas simples que me afetam e acordam partes sonolentas do espírito. É nesses momentos que me retomo. Sejam as partes, os pedaços, tristes ou alegres, saio sempre mais inteira. Passo a estado mais sólido. As partes vão se juntando e compondo a história que sou. Não fosse assim, não sentiria a consistência de ser. Existiria, apenas. Como medusas anêmonas esponjas.

Naquela tarde, foram olhos de mulher. Um azul pálido, quase branco, de criatura espacial. A princípio, julguei-a cega. Lembrei-me dos olhos dos romeiros que de tanto procurar a Virgem no céu acabam com as retinas queimadas. E dos olhos desmesurados de Santa Teresa d'Ávila, na escultura de madeira, em tamanho natural, no convento das Carmelitas Descalças, onde eu e minha avó assistíamos missa aos domingos. Reza a lenda que o padre escultor apaixonou-se perdidamente por sua criatura e, como punição, Deus o tornara cego. Como a dizer que já bastava, já vira mais do que o suficiente e era chegado o tempo de memória e contemplação. O pobre homem, resignado, foi aos poucos adquirindo aquela postura de fragilidade vertical peculiar aos cegos, trazendo na face um olhar fundo e eterna expressão de pasmo. Costumava contornar o rosto da santa com dedos trêmulos e de sua boca escapavam palavras incompreensíveis, misteriosas, donde, acredito que de nada adiantou a severidade divina. O faltoso continuou apaixonado e prosseguiu esculpindo. Deus, na verdade, não havia entendido a natureza daquela paixão. Uma antiga sensação de silêncio me toma, vinda de alguma região da memória. Silêncio móvel, tocado pelo hálito salgado do mar, trazido por brisas mornas ou ventos cantantes até minha casa.

Cravada no platô da grande colina, conhecida como Colina das Virgens, enfrentando mar aberto. Em tijolão escuro, integrada à mata, quase invisível, não fosse pela torre branca da caixa d'água. Telhado de várias águas tombam sobre ela, trazendo junto buganvílias terrosas, algumas vermelhas. A vegetação ali é espessa e povoada pelos pequenos animais que me alegraram a infância. Formigas ruivas e barrigudas, infatigáveis, às quais eu passava longo tempo observando, fascinada pela energia com que se lançavam ao trabalho, sendo que, certa vez, comi algumas para ver que gosto tinham; sapos, de olhar tristonho e jeito humilde, me davam pena; segundo meu avô, só se salvaram da extinção pela arte do pulo e passei, então, a olhá-los com mais respeito; aranhas negras, enormes, mas inofensivas, satisfeitas de serem o que eram, virtuosas tecedeiras; borboletas amarelas parecendo felizes e despreocupadas, como se não fossem morrer nunca.

O acesso à praia, nesga finíssima de areia cor de champanha, era, naquela época, bastante difícil, trilha estreita correndo como um riacho bêbado pelas matas e pedras e corcundas do terreno. Meu bisavô se apaixonou pela região e levado pelo amor à beleza e gosto de aventura, lá ficou. Ele, minha bisavó e o mar. O convento, esse sim, já existia. Para mim, ele já estava lá desde que o mundo é mundo, como os sapos e os deuses.

Não conheci meus pais. Uma gigantesca onda enfurecida estendeu sua língua espumante e os varreu da pedra de onde pescavam. Dizia minha avó, que o mar, invejoso de seu amor, levou-os para o reino das águas, para aprender com eles. Levei muito tempo achando que subitamente os veria surgir de volta como seres mutantes: metade-homem, metade-peixe. Era fácil imaginar minha mãe como sereia mas quanto a meu pai tinha sérias dúvidas e por vezes dava-lhe formas tão alucinadas que assustava a mim mesma. Hoje, compreendo meus pavores porque, mesmo não existindo, aquelas criaturas eram reais na minha imaginação e inteligíveis em meu pensamento.

Eu mal completara dois meses de vida. Passei, então, a ser filha de meu avô e minha avó. Ele era um homem sisudo e simples. Iniciara um comércio com madeira que ia dando certo. Não era dado a paixões a não ser no que dizia respeito a minha avó. Ela herdara do pai o espírito inquieto, a atração pelos desafios. Pintava. Sempre o mar. O mar e as pedras. O mar as pedras o vento. O mar amanhecendo, anoitecendo. Seus quadros, hoje, não têm preço. Se estivesse viva, não daria ao sucesso a menor importância. Mera conseqüência, diria. A arte não. A Arte era viva. Vovó acreditava em Deus, mas desconfiava de tudo o mais em matéria de religião. Achava a vida espantosa, uma grande aventura. O Convento fazia parte do espanto.

Miraculosamente, equilibrava-se na encosta de um penhasco, Penhasco das Descalças, pequena jóia clara sobre escura rocha arroxeada: paredes amarelo-queimado de onde se abriam, sobre o mar, estreitas janelas de madeira azul bem claro; piso de lajota, da mesma cor das buganvílias ferrosas, abundantes na região. Havia um grande pátio interno, calçado de cascalho brilhante e frio, bordejado por canteiros de onze horas, crisântemos e amarilis; no centro, pequenino lago de onde erguia-¬se uma colunata de pedra, coberta de hera, sobre a qual pousava um anjo de mármore; das mãos em concha, brotava fino jorro d' água que ao misturar-se às águas do lago provocava ligeiras ondas prateadas. À volta do pátio estendiam-se compridas galerias, frescas, ventiladas pela brisa marinha.

Para ir até lá, usávamos a trilha que meu avô mandara abrir e na qual trabalhara com afinco, atendendo aos rogos de minha avó. O convento era, naqueles tempos, a construção mais próxima de nós, e mesmo assim não fazíamos o percurso em menos de duas horas. Eu já acordava ansiosa, antecipando o passeio, mas sobretudo ansiosa por chegar perto daquelas mulheres escuras e mudas, os pés muito claros, que no inverno se arroxeavam de frio. De braços cruzados sob o hábito, caminhavam de um jeito que pareciam estar voando rente ao piso. Quando, do jardim, avistava alguma, numa das janelas superiores, podia jurar que iria sair voando, as saias pretas infladas pelo vento, gigantesca ave de negras plumagens. Aos treze anos mais se imagina do que se pensa e eu inventava de tudo: transgressões, fugas, vinganças. No fundo, o exílio já me parecia medonho o bastante, mas havia ainda o rigor das condutas, a obrigatoriedade dos votos de silêncio e castidade. E eram doces e sorridentes! Aprendi com elas a linguagem do olhar e do gesto. Lia os humores no rosto, adivinhava sentimentos, premonitava atitudes. As freirinhas não falavam, minha avó falava pouco, meu avô menos ainda. Convivi com todo esse silêncio de forma saudável, mas passei a falar sozinha e a conversar com a natureza. Hábito que conservo e que por vezes ainda me faz companhia. Gosto também, herança daqueles tempos, de olhar um rosto e tentar adivinhar seu nome. Dizem, que, a meio caminho de uma vida, imagem e nome se confundem. O rosto expressa um nome e conhecendo-se o primeiro adivinha-se o segundo. Ou batiza-se de novo.

Os nomes que as monjas tinham! Eram muitas e com nomes tão longos quanto a cauda prateada da lua sobre o mar; eu ia decorando aos poucos. Às vezes, tinha que adivinhar, como num jogo. Depois, tornou-se hábito: Irmã Ana da Luz Celeste! Irmã Clarissa da Eterna Bondade! Irmã Cecília das Purezas! Irmã Maria Sem Pecado! Irmã Agostiniana das Divinas Intuições! Um dos que eu mais gostava: Irmã Clara das Águas do Mundo! Era a mais jovem. A mais tímida. A dos olhos cinzentos, enluarados. Gostei dela desde o começo. Nunca escutei sua voz.

Soube, por minha avó, que pertencia a uma família local, rica, poderosa e, diziam, amaldiçoada. O pai morrera assassinado. Era a única filha, mas havia um irmão gêmeo ao qual era muito apegada. A mãe, com a viuvez, trancara-se. Caminhava, de lá para cá, durante a noite mas de dia como que não existia. Esses eram os fatos. Mas falava-se em paixões e amores proibidos. Uma vez, vi o irmão, de longe. Costumava perambular pelas praias. Lembro¬-me que senti vontade de correr e aproximar-me, só para ouvir sua voz. Achei que ouvindo o rapaz estaria ouvindo a irmã.

Quantas vezes, em meu quarto, falava para as paredes, conversava com o espelho, contava mentiras para os sapos, imóveis como estátuas, presos à narrativa, hipnotizados. E fazia isso para experimentar vozes, para descobrir a que melhor se adaptaria ao jeito dela, aos olhos dela. Não cheguei a nenhuma conclusão, nada parecia combinar, e acabei ficando com seu silêncio.

Aquele domingo já nascera predestinado. Uma corrente de ar frio veio vindo, trazida por ventos irados, chegando rápida, envolvendo as matas escurecidas, gelando as águas, empinando as ondas, colhendo de surpresa pequeninos animais, provocando revoadas, migrações atípicas, afinando o ar, desmaiando cores. Mas não perderíamos a missa por tão pouco! Quanto a mim, menos pela missa do que pelas delícias dos pés enfiados nas botas de borracha vermelha e o prazer de inventar tramas complicadas. Metida nas botas berrantes, sentia-me capaz de tudo. A trilha da praia, ladeada pela mata, formava um corredor natural por onde subia o vento, com força de locomotiva. Depois, o vento seguia assobiando pelo caminho do convento, açoitando os ramos das árvores, soprando poeira vermelha para o alto, manchando de ferrugem os verdes dos arbustos e nos forçando a cobrir o rosto com lenços coloridos. Naquela manhã, era tão forte que ia nos empurrando. Eu, deliciada, imaginando que voava. A medida que nos aproximávamos, podíamos ouvir o mar quebrando surdo nas grandes pedras negras da minúscula praia abaixo do convento. A praia das Freiras.

Só que não podiam frequentá-la. Mas algumas das irmãs não conseguiam esconder o desejo de descer até aquela faixa comprida de areia alva, incrustada de conchas rosadas e algas cor de ardósia. Eu sempre dava um jeito de ir até lá para perambular pelas pedras e molhar os pés na água gelada. Esse gosto de flanar pelos lugares, sem destino, nasceu ali. Foi num desses dias que avistei Irmã Clara das Águas. Estava sentada bem próxima a um atol, num ângulo onde, lá do convento, seria impossível vê-Ia, o hábito escuro se confundindo às pedras azuladas. Abraçava as pernas encolhidas, apoiando o queixo sobre um dos joelhos, num jeito abandonado. Quando me viu, nem se mexeu. Olhou-me e sorriu. Sorri também, mas não cheguei mais perto. Não pareceu ficar preocupada com minha presença. Como se nada importasse muito e o fim do mundo estivesse próximo. Irmã das Águas era como um grande e raro cormorão, pássaro dos Gálapos, que além de ser incapaz de voar não aprendera a temer os homens, sendo, em tempos remotos, presa fácil de marinheiros à procura de carne para comer. Nunca falei nada a ninguém. Não é da minha natureza trair. Pensei que com aquele nome seria impossível mantê-la longe do mar. Pensei também que os olhos de Irmã Clara eram de água. E que ninguém, ninguém nesse mundo, poderia ajudá-la. Quando a temperatura da água subia, eram comuns as águas vivas. Algumas encalhavam na areia e se fingiam de mortas.

Naquele domingo, chegamos atrasadas, mesmo com os ventos a nosso favor. E Padre Inácio ainda não chegara. Havia uma certa desordem no ar, indefinida. Certa urgência, gestos bruscos. Meus olhos se arregalavam. Às vezes o silêncio é absurdo. Criminoso até. Mas elas não falavam. E a angústia pairava escura sobre nós e sobre as coisas. O bater de uma porta, o barulho dos pés sobre as pedras, o zumbido de uma abelha, tudo era um alívio. Minha avó me apertava a mão com força. O vento ia sossegando aos poucos. Lá em baixo, o mar se aquietava. Fui até o pequeno mirante, ao lado da capela, e vi Padre Inácio subindo. Era um homem franzi no, com cara de santo. Sofria de asma e de um jeito de quem vai desfalecer logo adiante. Então já havia chegado! Vinha pálido e ouvi seu peito chiando quando passou por mim. "Lá em baixo ela não está". Por uma dessas coisas que não se explicam, tive a certeza de que falava de Irmã Clara das Águas. Senti as pernas falhando. O padre e as freiras encaminharam-se para a capela. Vovó e eu os seguimos. Foi a mais longa das missas.

Foi também o dia em que Irmã Clara das Águas do Mundo desapareceu. Ainda trago nos olhos a imagem de seu olhar líquido e de seu sorriso calado. Encalharam na minha alma. Como as águas-vivas na praia. Nunca mais se soube dela. Todas as buscas foram infrutíferas e cada um deu à história o final que quis. Ou o que pode. Contam os pescadores, que um gigantesco pássaro desconhecido, prateado e radiante, arremessou-se de uma das janelas do convento e subiu como uma imensa flecha em direção ao céu; durante muito tempo sobrevoou o atol e era como se a lua tivesse criado asas cujo movimento causava tal deslocamento de ar que o mar, encrespando-se, passou a rugir furioso quebrando, com estrondo, na rocha; depois, num mergulho livre, precipitou-se em direção ao oceano e desapareceu. Dizem, ainda, que dois vultos, parecendo um homem e uma mulher, foram vistos a subir pela escarpada encosta do Penhasco Branco, vizinho ao Penhasco das Descalças, e assim chamado porque sua rocha azul escuro, sob a claridade do sol do meio dia, toma uma coloração esbranquiçada e brilhante. Nele, a rocha é nua e chegando-se ao topo tem-se acesso à Praia dos Flamingos. Mas é uma passagem tão trabalhosa, tão cheia de armadilhas naturais, que ninguém, até então, se atrevera a descer por ela. Juram que os vultos eram de Clara e de seu irmão.

Quanto a mim, fui tomada de grave melancolia e durante dois meses não abri a boca para falar com quem quer que fosse. Minha avó me olhava, muito séria, mas não me perturbava, deixando-me à vontade para experimentar aquele sentimento novo e doloroso. Às vezes, vinha até meu quarto, sentava-se na poltrona florida, arrumava a tela no cavalete e pintava por horas e horas. Quando cansei e passei a agir normalmente, ela não fez nenhum comentário. A princípio, minha voz saiu arranhada, desafinando. Depois, aos poucos, foi voltando ao normal. Data desses dias roucos minha mania de assobiar. Continuei a viver no topo da colina, tendo a natureza como companhia, aprendendo a linguagem das coisas e o valor do silêncio. O seu horror eu já conhecia. Penso muito naquele domingo. E fico só imaginando...

Será que Clara das Águas do Mundo conseguiu gritar?


domingo, 7 de fevereiro de 2010

Espelho

Do blog do Gabriel Martinho, poeta-cineasta. Ou cineasta-poeta.
Gabriel passou rapidamente pelas aulas para o Vestibular. Sempre teve talento com as palavras. Pedi permissão a ele para trazer para cá o texto abaixo.
Vão lá ao blog dele conferir as boas coisas: http://palavraacostumada.blogspot.com/


ESPELHO


acontessência

a vida perdoa só tempo. aquele tal uno colossal. pudesse viver de tudo a esquecer de passado e a vida seria muito. do acaso ao talvez. engraçado como é árduo pra difícil. como mais foge que aproxima essa querência. para isso, é claro, elocubra-se essência e morte até.

o medo é vertente da vida. um sadismo cômodo em mover sofrendo.

não há dúvidas do maior, ainda que escuro. sensações impulsionais pulsantes do eterno. um peso sem vago de total esmago. leve quando desencaixa em livre conexão. isso encuca. faz crer nomes diversos [arte, deus, essência, meteoro, nirvana, gol, suor, canto, ballet, rio, etc, etc e etc].

responsabilidade juvenil de ser. intensa busca por identidade que não se basta. quanto mais indócil menos invólucra, apesar de amadurecida. acontecimento existencial natural enquanto sobrevivência. refutação do é pelo deveria. necessidade de aceitar a realidade anacrônica ao conhecimento.

genética responde por involuntariedade. arte assume insanidade.

de resto, sociedade.
como desculpa
pisar sobre pisos
rir sobre risos
amar sobre outros
intuir sobre coisas
por acontecer.


Aqui no Sistema

Márcia Mendel faz parte de um grupo da Oficina da Palavra. Tem muito senso crítico, e seus textos são carregados de humor. Entre centenas de contos, “Aqui no Sistema” ganhou direito à publicação no livro “ Contos de Todos Nós”, lançado durante a última Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, em 2009. Há algumas cópias já, rolando na Internet, mas sou testemunha da verdadeira autoria, uma vez que acompanhei o processo de construção deste texto.
Marcia Mendel


Aqui no Sistema


_ Pizzaria Clique e Pronto, Maria, boa tarde.

_Boa tarde, eu queria uma pizza, metade calabresa e metade portuguesa, por favor.

 _Senhor Ignácio, eu acharia melhor substituir a metade calabresa por uma vegetariana. O seu colesterol está muito alto. 

 _Eu sei, mas hoje é sábado e minha médica disse que, uma vez por semana, eu poderia comer.

_Não, senhor, segundo consta aqui no sistema, o senhor está terminantemente proibido de comer qualquer tipo de gordura trans. E só estão permitidas duas fatias de pizza que juntas não ultrapassem 100 kcal, mas isso, se o senhor tiver cumprido sua meta semanal de exercícios. O senhor cumpriu?

_Mas eu não vou comer a pizza sozinho...

_Sabemos senhor Ignácio, o senhor sempre pede pizza quinzenalmente, aos sábados, que são justamente os dias que passa com o João e a Clara. O próximo fim de semana seria da dona Elza, mas como ela estará viajando com o senhor Roberto para Cuba, o senhor terá que ficar dois fins de semana seguidos com as crianças, a não ser que peça para a Dona Amélia cuidar delas. Por enquanto não consta nada aqui no sistema relativo a alguma viagem da dona Amélia. Já a sua ex-sogra estará naquele SPA em Itaipava que costuma ir a cada dois meses.

_Muito obrigado por me ajudar a decidir com quem meus filhos ficarão no próximo fim de semana, mas voltando ao assunto da pizza, aliás, foi pra isso que eu liguei, ou será que teclei errado?Ah, sei lá, já nem sei direito com quem estou falando.

_ Pizzaria Clique e Pronto, Maria, boa tarde.

_Ah claro, era você, Maria... Não precisa repetir tudo novamente: “Pizzaria Clique e Pronto, Maria, boa tarde”

_Mas foi o senhor que disse que não sabia com quem estava falando e segundo o que diz aqui no sistema, a cada vez que o cliente der sinais de que está ficando confuso devemos repetir tudo desde o início.

_Ok, ok, dona Maria. Substitui então a pizza calabresa por vegetariana, pelo menos a metade portuguesa você pode deixar?

_Impossível, senhor Ignácio. A metade portuguesa tem, em cada fatia, 29% de gordura trans e 72 kcal, ou seja, praticamente metade de uma fatia já iria ultrapassar o máximo de carboidratos que o senhor poderia atingir em um sábado.

_Então tá. Eu não como a portuguesa, como só a vegetariana, eu prometo. Eu deixo a portuguesa para o João e a Clara.

_Desculpe lhe informar, senhor, mas o João também não pode comer pizza portuguesa.

_Ai meu deus, por quê?

_Porque a pizza portuguesa contém cebola e a última vez que o João comeu cebola, o resultado parece que não foi nada bom, segundo consta aqui no sistema.

_Ah é?! E o que aconteceu com o João, dona Maria?

_Ele teve reações alérgicas fortíssimas. Os olhos ficaram inchados e placas vermelhas apareceram no pescoço. O senhor não deveria saber por que, neste fim de semana, ele estava com a sua ex-esposa. Era o fim de semana dela.

_Mais uma vez, muito obrigado pela informação. Mas será que a senhora então, poderia tirar a cebola da pizza portuguesa e trazê-la?

_Não, senhor! Nenhuma das pizzas pode ter seus ingredientes alterados.

_Mas você não está substituindo nada, só está tirando.

_Por favor, senhor Ignácio, não insista. O sistema não nos permite retirar a cebola. Peço também que o senhor não se altere, senão sua pressão irá subir e os preços dos remédios para controlá-la estão cada vez mais altos. E sua situação financeira também não é das melhores.

_O que a senhora sabe da minha situação financeira?

_Eu não sei de nada, é o que diz aqui no sistema: 30 reais de saldo devedor e dois mil para serem pagos na próxima fatura do cartão de crédito que vence dia 07.

_A senhora só pode estar brincando.

_Não, senhor. O sistema não permite brincadeiras.

_Mas, que palhaçada é essa?!!

_Não senhor, eu não sou palhaça, sou atendente da pizzaria Clique e Pronto.

_Então, porra, me manda a merda da pizza vegetariana com uma, uma... de alface!

_Senhor, detectamos duas palavras em sua frase que não concordam com o nosso sistema. O senhor poderia repetir a última frase, por favor?

_Eu-não-quero-mais-pizza!!!!

_Desculpe, senhor?

_Eu-não-quero-mais-pizza!!!

_O sistema não decodificou a sua mensagem.

_Vão pra puta que os pariu, todos! Mensagem, colesterol, rúcula, alface, sistema e você, Dona Maria!

_Desculpe, senhor Ignácio, tivemos uma falha no sistema.
...

_ Pizzaria Clique e Pronto, Renata, boa tarde.


Trabalho Infantil


Pedro Fonte, em 2009, foi aluno em nossas aulas de preparação para a redação do Vestibular. A análise da pontuação, em cada texto seu, por exemplo, foi-lhe possibilitando organizar suas ideias, sempre muito boas, sobre temas diversos e, finalmente, garantiu ao Pedro um excelente resultado na redação no Vestibular.

O tema abaixo foi a proposta de redação do ENEM/2005.

Trabalho Infantil


Durante a história da sociedade humana, por mais que nem sempre tenham existido leis que proibissem o trabalho infantil, o bom senso agia, permitindo que tal ato fosse condenado. Assim como nos dias de hoje, as famílias mais abastadas sempre puderam se dar o direito de manter sua prole sem trabalhar. Aqueles pais com dificuldades financeiras, no entanto, concordando ou não com o trabalho infantil, necessitavam da renda e da força de trabalho de seus filhos.


Um fator tão presente na história da humanidade não aconteceu de forma diferente no Brasil. Conforme as desigualdades iam surgindo, o trabalho infantil dava suas caras. Desde os tempos da escravidão dos negros, até a promulgação da Lei do Ventre Livre, não havia restrições sobre a exploração dos filhos de escravos. Eles eram forçados, inescrupulosamente, a trabalhar para seus senhores. Mesmo nos dias atuais, em que a desigualdade econômica é notória, os jovens desfavorecidos são destinados a labutar em detrimento de sua infância e juventude.


O trabalho infantil no Brasil não é uma questão a ser vista com olhar reprovador sobre os pais que põem seus filhos nesta situação. Não são eles que desrespeitam os direitos humanos. Eles são pessoas poucos instruídas, sem educação, sem opções, esquecidas pela sociedade. Esta, por outro lado, tem uma grande parcela de culpa no que diz respeito à labuta infantil no país, pelo fato de ela ter papel fundamental na criação da barreira que é a exclusão social.


Tratar do trabalho infantil como uma escolha dos pais, ou dos próprios jovens é errôneo, visto que eles não têm direito à escolha. Deve-se retratar este problema como um fator histórico, totalmente dependente da desigualdade entre as classes que vem se ampliando desde o momento em que a sociedade brasileira se formou. Uma saída plausível para esta situação é a inclusão destes jovens na sociedade, o que remete a outras questões mais profundas do país, porém fundamentais ao desenvolvimento de uma sociedade mais justa.