segunda-feira, 14 de junho de 2010

As águas

Ângela Moss de Sá freqüentou a Oficina ainda no seu início, nos idos da década de 1980. Tomou consciência da sua função de escritora. Publicou dois ótimos livros de conto. No excelente – “De que lado estás?”, de 1998 - há também textos produzidos na Oficina. No segundo livro, a confirmação da bela escritora que é a Ângela: “Ensaio de Afetos”, Aeroplano Editora, 2004. Constância Lima Duarte – especialista em Literatura de Mulheres – deixa claro, na introdução, que estamos diante de uma grande escritora: “A impressão que permanece quando terminamos a leitura deste Ensaio de Afetos (e mesmo do livro anterior) é o de termos realizado um sólido mergulho em direção aos mais profundos alicerces da alma feminina. (...) Como Clarice, Ângela desdobra a cada página suas personas e parece encarar a vida como um enigma, que, como tal, urge decifrar.”



As águas


"Sorria facilmente e o sorriso parecia afastá-la.”J.L. Borges.
“O livro de areia”

Há certas coisas que têm o poder de devolver pedaços de vida. São coisas simples que me afetam e acordam partes sonolentas do espírito. É nesses momentos que me retomo. Sejam as partes, os pedaços, tristes ou alegres, saio sempre mais inteira. Passo a estado mais sólido. As partes vão se juntando e compondo a história que sou. Não fosse assim, não sentiria a consistência de ser. Existiria, apenas. Como medusas anêmonas esponjas.

Naquela tarde, foram olhos de mulher. Um azul pálido, quase branco, de criatura espacial. A princípio, julguei-a cega. Lembrei-me dos olhos dos romeiros que de tanto procurar a Virgem no céu acabam com as retinas queimadas. E dos olhos desmesurados de Santa Teresa d'Ávila, na escultura de madeira, em tamanho natural, no convento das Carmelitas Descalças, onde eu e minha avó assistíamos missa aos domingos. Reza a lenda que o padre escultor apaixonou-se perdidamente por sua criatura e, como punição, Deus o tornara cego. Como a dizer que já bastava, já vira mais do que o suficiente e era chegado o tempo de memória e contemplação. O pobre homem, resignado, foi aos poucos adquirindo aquela postura de fragilidade vertical peculiar aos cegos, trazendo na face um olhar fundo e eterna expressão de pasmo. Costumava contornar o rosto da santa com dedos trêmulos e de sua boca escapavam palavras incompreensíveis, misteriosas, donde, acredito que de nada adiantou a severidade divina. O faltoso continuou apaixonado e prosseguiu esculpindo. Deus, na verdade, não havia entendido a natureza daquela paixão. Uma antiga sensação de silêncio me toma, vinda de alguma região da memória. Silêncio móvel, tocado pelo hálito salgado do mar, trazido por brisas mornas ou ventos cantantes até minha casa.

Cravada no platô da grande colina, conhecida como Colina das Virgens, enfrentando mar aberto. Em tijolão escuro, integrada à mata, quase invisível, não fosse pela torre branca da caixa d'água. Telhado de várias águas tombam sobre ela, trazendo junto buganvílias terrosas, algumas vermelhas. A vegetação ali é espessa e povoada pelos pequenos animais que me alegraram a infância. Formigas ruivas e barrigudas, infatigáveis, às quais eu passava longo tempo observando, fascinada pela energia com que se lançavam ao trabalho, sendo que, certa vez, comi algumas para ver que gosto tinham; sapos, de olhar tristonho e jeito humilde, me davam pena; segundo meu avô, só se salvaram da extinção pela arte do pulo e passei, então, a olhá-los com mais respeito; aranhas negras, enormes, mas inofensivas, satisfeitas de serem o que eram, virtuosas tecedeiras; borboletas amarelas parecendo felizes e despreocupadas, como se não fossem morrer nunca.

O acesso à praia, nesga finíssima de areia cor de champanha, era, naquela época, bastante difícil, trilha estreita correndo como um riacho bêbado pelas matas e pedras e corcundas do terreno. Meu bisavô se apaixonou pela região e levado pelo amor à beleza e gosto de aventura, lá ficou. Ele, minha bisavó e o mar. O convento, esse sim, já existia. Para mim, ele já estava lá desde que o mundo é mundo, como os sapos e os deuses.

Não conheci meus pais. Uma gigantesca onda enfurecida estendeu sua língua espumante e os varreu da pedra de onde pescavam. Dizia minha avó, que o mar, invejoso de seu amor, levou-os para o reino das águas, para aprender com eles. Levei muito tempo achando que subitamente os veria surgir de volta como seres mutantes: metade-homem, metade-peixe. Era fácil imaginar minha mãe como sereia mas quanto a meu pai tinha sérias dúvidas e por vezes dava-lhe formas tão alucinadas que assustava a mim mesma. Hoje, compreendo meus pavores porque, mesmo não existindo, aquelas criaturas eram reais na minha imaginação e inteligíveis em meu pensamento.

Eu mal completara dois meses de vida. Passei, então, a ser filha de meu avô e minha avó. Ele era um homem sisudo e simples. Iniciara um comércio com madeira que ia dando certo. Não era dado a paixões a não ser no que dizia respeito a minha avó. Ela herdara do pai o espírito inquieto, a atração pelos desafios. Pintava. Sempre o mar. O mar e as pedras. O mar as pedras o vento. O mar amanhecendo, anoitecendo. Seus quadros, hoje, não têm preço. Se estivesse viva, não daria ao sucesso a menor importância. Mera conseqüência, diria. A arte não. A Arte era viva. Vovó acreditava em Deus, mas desconfiava de tudo o mais em matéria de religião. Achava a vida espantosa, uma grande aventura. O Convento fazia parte do espanto.

Miraculosamente, equilibrava-se na encosta de um penhasco, Penhasco das Descalças, pequena jóia clara sobre escura rocha arroxeada: paredes amarelo-queimado de onde se abriam, sobre o mar, estreitas janelas de madeira azul bem claro; piso de lajota, da mesma cor das buganvílias ferrosas, abundantes na região. Havia um grande pátio interno, calçado de cascalho brilhante e frio, bordejado por canteiros de onze horas, crisântemos e amarilis; no centro, pequenino lago de onde erguia-¬se uma colunata de pedra, coberta de hera, sobre a qual pousava um anjo de mármore; das mãos em concha, brotava fino jorro d' água que ao misturar-se às águas do lago provocava ligeiras ondas prateadas. À volta do pátio estendiam-se compridas galerias, frescas, ventiladas pela brisa marinha.

Para ir até lá, usávamos a trilha que meu avô mandara abrir e na qual trabalhara com afinco, atendendo aos rogos de minha avó. O convento era, naqueles tempos, a construção mais próxima de nós, e mesmo assim não fazíamos o percurso em menos de duas horas. Eu já acordava ansiosa, antecipando o passeio, mas sobretudo ansiosa por chegar perto daquelas mulheres escuras e mudas, os pés muito claros, que no inverno se arroxeavam de frio. De braços cruzados sob o hábito, caminhavam de um jeito que pareciam estar voando rente ao piso. Quando, do jardim, avistava alguma, numa das janelas superiores, podia jurar que iria sair voando, as saias pretas infladas pelo vento, gigantesca ave de negras plumagens. Aos treze anos mais se imagina do que se pensa e eu inventava de tudo: transgressões, fugas, vinganças. No fundo, o exílio já me parecia medonho o bastante, mas havia ainda o rigor das condutas, a obrigatoriedade dos votos de silêncio e castidade. E eram doces e sorridentes! Aprendi com elas a linguagem do olhar e do gesto. Lia os humores no rosto, adivinhava sentimentos, premonitava atitudes. As freirinhas não falavam, minha avó falava pouco, meu avô menos ainda. Convivi com todo esse silêncio de forma saudável, mas passei a falar sozinha e a conversar com a natureza. Hábito que conservo e que por vezes ainda me faz companhia. Gosto também, herança daqueles tempos, de olhar um rosto e tentar adivinhar seu nome. Dizem, que, a meio caminho de uma vida, imagem e nome se confundem. O rosto expressa um nome e conhecendo-se o primeiro adivinha-se o segundo. Ou batiza-se de novo.

Os nomes que as monjas tinham! Eram muitas e com nomes tão longos quanto a cauda prateada da lua sobre o mar; eu ia decorando aos poucos. Às vezes, tinha que adivinhar, como num jogo. Depois, tornou-se hábito: Irmã Ana da Luz Celeste! Irmã Clarissa da Eterna Bondade! Irmã Cecília das Purezas! Irmã Maria Sem Pecado! Irmã Agostiniana das Divinas Intuições! Um dos que eu mais gostava: Irmã Clara das Águas do Mundo! Era a mais jovem. A mais tímida. A dos olhos cinzentos, enluarados. Gostei dela desde o começo. Nunca escutei sua voz.

Soube, por minha avó, que pertencia a uma família local, rica, poderosa e, diziam, amaldiçoada. O pai morrera assassinado. Era a única filha, mas havia um irmão gêmeo ao qual era muito apegada. A mãe, com a viuvez, trancara-se. Caminhava, de lá para cá, durante a noite mas de dia como que não existia. Esses eram os fatos. Mas falava-se em paixões e amores proibidos. Uma vez, vi o irmão, de longe. Costumava perambular pelas praias. Lembro¬-me que senti vontade de correr e aproximar-me, só para ouvir sua voz. Achei que ouvindo o rapaz estaria ouvindo a irmã.

Quantas vezes, em meu quarto, falava para as paredes, conversava com o espelho, contava mentiras para os sapos, imóveis como estátuas, presos à narrativa, hipnotizados. E fazia isso para experimentar vozes, para descobrir a que melhor se adaptaria ao jeito dela, aos olhos dela. Não cheguei a nenhuma conclusão, nada parecia combinar, e acabei ficando com seu silêncio.

Aquele domingo já nascera predestinado. Uma corrente de ar frio veio vindo, trazida por ventos irados, chegando rápida, envolvendo as matas escurecidas, gelando as águas, empinando as ondas, colhendo de surpresa pequeninos animais, provocando revoadas, migrações atípicas, afinando o ar, desmaiando cores. Mas não perderíamos a missa por tão pouco! Quanto a mim, menos pela missa do que pelas delícias dos pés enfiados nas botas de borracha vermelha e o prazer de inventar tramas complicadas. Metida nas botas berrantes, sentia-me capaz de tudo. A trilha da praia, ladeada pela mata, formava um corredor natural por onde subia o vento, com força de locomotiva. Depois, o vento seguia assobiando pelo caminho do convento, açoitando os ramos das árvores, soprando poeira vermelha para o alto, manchando de ferrugem os verdes dos arbustos e nos forçando a cobrir o rosto com lenços coloridos. Naquela manhã, era tão forte que ia nos empurrando. Eu, deliciada, imaginando que voava. A medida que nos aproximávamos, podíamos ouvir o mar quebrando surdo nas grandes pedras negras da minúscula praia abaixo do convento. A praia das Freiras.

Só que não podiam frequentá-la. Mas algumas das irmãs não conseguiam esconder o desejo de descer até aquela faixa comprida de areia alva, incrustada de conchas rosadas e algas cor de ardósia. Eu sempre dava um jeito de ir até lá para perambular pelas pedras e molhar os pés na água gelada. Esse gosto de flanar pelos lugares, sem destino, nasceu ali. Foi num desses dias que avistei Irmã Clara das Águas. Estava sentada bem próxima a um atol, num ângulo onde, lá do convento, seria impossível vê-Ia, o hábito escuro se confundindo às pedras azuladas. Abraçava as pernas encolhidas, apoiando o queixo sobre um dos joelhos, num jeito abandonado. Quando me viu, nem se mexeu. Olhou-me e sorriu. Sorri também, mas não cheguei mais perto. Não pareceu ficar preocupada com minha presença. Como se nada importasse muito e o fim do mundo estivesse próximo. Irmã das Águas era como um grande e raro cormorão, pássaro dos Gálapos, que além de ser incapaz de voar não aprendera a temer os homens, sendo, em tempos remotos, presa fácil de marinheiros à procura de carne para comer. Nunca falei nada a ninguém. Não é da minha natureza trair. Pensei que com aquele nome seria impossível mantê-la longe do mar. Pensei também que os olhos de Irmã Clara eram de água. E que ninguém, ninguém nesse mundo, poderia ajudá-la. Quando a temperatura da água subia, eram comuns as águas vivas. Algumas encalhavam na areia e se fingiam de mortas.

Naquele domingo, chegamos atrasadas, mesmo com os ventos a nosso favor. E Padre Inácio ainda não chegara. Havia uma certa desordem no ar, indefinida. Certa urgência, gestos bruscos. Meus olhos se arregalavam. Às vezes o silêncio é absurdo. Criminoso até. Mas elas não falavam. E a angústia pairava escura sobre nós e sobre as coisas. O bater de uma porta, o barulho dos pés sobre as pedras, o zumbido de uma abelha, tudo era um alívio. Minha avó me apertava a mão com força. O vento ia sossegando aos poucos. Lá em baixo, o mar se aquietava. Fui até o pequeno mirante, ao lado da capela, e vi Padre Inácio subindo. Era um homem franzi no, com cara de santo. Sofria de asma e de um jeito de quem vai desfalecer logo adiante. Então já havia chegado! Vinha pálido e ouvi seu peito chiando quando passou por mim. "Lá em baixo ela não está". Por uma dessas coisas que não se explicam, tive a certeza de que falava de Irmã Clara das Águas. Senti as pernas falhando. O padre e as freiras encaminharam-se para a capela. Vovó e eu os seguimos. Foi a mais longa das missas.

Foi também o dia em que Irmã Clara das Águas do Mundo desapareceu. Ainda trago nos olhos a imagem de seu olhar líquido e de seu sorriso calado. Encalharam na minha alma. Como as águas-vivas na praia. Nunca mais se soube dela. Todas as buscas foram infrutíferas e cada um deu à história o final que quis. Ou o que pode. Contam os pescadores, que um gigantesco pássaro desconhecido, prateado e radiante, arremessou-se de uma das janelas do convento e subiu como uma imensa flecha em direção ao céu; durante muito tempo sobrevoou o atol e era como se a lua tivesse criado asas cujo movimento causava tal deslocamento de ar que o mar, encrespando-se, passou a rugir furioso quebrando, com estrondo, na rocha; depois, num mergulho livre, precipitou-se em direção ao oceano e desapareceu. Dizem, ainda, que dois vultos, parecendo um homem e uma mulher, foram vistos a subir pela escarpada encosta do Penhasco Branco, vizinho ao Penhasco das Descalças, e assim chamado porque sua rocha azul escuro, sob a claridade do sol do meio dia, toma uma coloração esbranquiçada e brilhante. Nele, a rocha é nua e chegando-se ao topo tem-se acesso à Praia dos Flamingos. Mas é uma passagem tão trabalhosa, tão cheia de armadilhas naturais, que ninguém, até então, se atrevera a descer por ela. Juram que os vultos eram de Clara e de seu irmão.

Quanto a mim, fui tomada de grave melancolia e durante dois meses não abri a boca para falar com quem quer que fosse. Minha avó me olhava, muito séria, mas não me perturbava, deixando-me à vontade para experimentar aquele sentimento novo e doloroso. Às vezes, vinha até meu quarto, sentava-se na poltrona florida, arrumava a tela no cavalete e pintava por horas e horas. Quando cansei e passei a agir normalmente, ela não fez nenhum comentário. A princípio, minha voz saiu arranhada, desafinando. Depois, aos poucos, foi voltando ao normal. Data desses dias roucos minha mania de assobiar. Continuei a viver no topo da colina, tendo a natureza como companhia, aprendendo a linguagem das coisas e o valor do silêncio. O seu horror eu já conhecia. Penso muito naquele domingo. E fico só imaginando...

Será que Clara das Águas do Mundo conseguiu gritar?


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