segunda-feira, 14 de junho de 2010

A menina que tinha sede


Jussara Olinev é atriz, professora e, agora, também escritora. Seus textos revelam um imaginário fértil e uma postura criativa diante de suas personagens. Tocam o sagrado da vida. Confiram.


A menina que tinha sede

Jussara Olinev

Era uma vez uma menina que sonhava. Sonhava tanto que se esquecia de viver.

Sua mãe, já bastante preocupada com tamanha excentricidade da filha, não se cansava de dizer:

- Minha filha, pare um pouco de sonhar e viva!

A menina, por sua vez, sempre respondia:

- Ah, mãe... O sonho estava tão bom que eu me esqueci de viver!
E assim foi durante anos e anos...
No dia em que completaria 15 anos, a menina sonhou estranho... Uma mulher, enrugadinha, enrugadinha, feito terra de sertão, dizia para ela que estava chegando o dia em que ela começaria a sentir muita sede. Uma sede tão intensa que nem toda água do mundo nem lágrimas de mãe, poderiam saciar. Apenas uma xicarazinha e uma nascente de lembrar poderiam lhe ajudar!

A menina ficou cismada... A cisma foi crescendo, crescendo tanto que ela não mais sonhava, tampouco vivia e de nada se lembrava! Então se esqueceu da cisma, esqueceu-se da velha; esqueceu-se de quem era ela!

Chorou. Isso ela conseguia! A menina chorou tanto que se desidratou, e a sede, finalmente, ali chegou!

A avó vinha com água; os tios, com leite. O pai gritava: “Tragam sucos!” A mãe, desesperada, chorava, e a menina que tanta sede sentia, mas que de tudo se esquecia, acabava não bebendo nada.

Uma vizinha chegou com o Padre, a professora trouxe o médico; os ventos, a curandeira, mas tudo o que conseguiram, apesar de todo o esforço e cuidado, foi um suspiro comprido da menina com sede e que de nada se lembrava!
Na sala, um burburinho... Pessoas falavam, outras choravam, algumas até gritavam! E todas elas se esqueciam da menina que, dali, afastava-se.
Afastava-se? Mas... para onde?
A menina também não sabia! Apenas seguia e imitava uma pequena borboleta que ali passeava. Cheirou os perfumes de todas as flores de todos os lugares! “Que incrível! Nunca vivi ou sonhei algo tão belo” – sentia ela! Sabendo que logo se esqueceria daquele momento, a menina – esquecida da sede que sentia – quebra uma pequena xícara que estava – mas não se lembrava o porquê – em suas mãos. Guarda os cacos num bolso e segura um. Faz o desenho do momento de que ela não desejava se esquecer e guarda o caquinho no outro bolso.
Que sede!! Ela não se lembrava, mas o seu corpo gritava! Avistou, então, um peixinho que brincava num rio próximo. Sem questionar, seguiu as ordens do corpo, mergulhou no rio... “Hum, que gostoso!!” E com o peixinho travesso pulando, nadando e brincando, conheceu o mundo todo! “Quantos lugares bonitos! Quanta gente diferente! Não sei se é o meu esquecimento... ou se realmente é um fato... mas algo me diz, fazendo cosquinhas nos ouvidos, que eu nunca havia sonhado, vivido ou pensado tantas alegrias!!”. Temendo o esquecimento de momentos tão fantásticos, retira um caquinho do bolso, faz o desenho do povo e dos lugares visitados.
De sede em sede e de vida em vida, sonha os desenhos de todos os caquinhos.
Com o corpo cansado e a mente esquecida, a menina senta-se embaixo de uma grande árvore, sob um céu muito rosado.

- Que lugar é esse? Será sonho? Um mundo encantado?

Não sabia! Apenas sentia que tudo aquilo que via era o encontro do céu com a terra. Ao se levantar para apreciar o lugar, caquinhos caem no chão. “O que será que eles são?”. Usando uma massa estranha – um tipo de barro ou argila – a menina cola os caquinhos... “Uma xícara?! Mas é tão esquisita!”. Começa então a cismar! A cisma foi crescendo, crescendo tanto que a sede foi voltando. Avista uma nascente.

- Nossa! Que diferente! A água brota colorida!

Não se lembrava de nada, mas de sede o corpo berrava! Pegou a xícara estranha, até então sem serventia, encheu com a água colorida e regou seus lábios rachados... Seu corpo todo florescia, mas o que não percebia é que agora ela se lembrava e nunca mais se esquecia!

Voltou feliz para casa! Agora sonhava e vivia... vivia e sonhava... E de tudo se lembrava e de nada se esquecia!

Chegou a casa, e não havia ninguém! “O que terá acontecido? Não me deixaram um aviso?...” Correu para o quarto e tudo estava em seu lugar... Guardou a xícara no armário e sentou-se na penteadeira. Olhou-se no espelho... Seus olhos ainda eram os mesmos... O seu rosto, outrora liso e faceiro, agora é todo desenhado e sabido! Desenhado como os cacos da xícara estranha, colados com uma massa esquisita, revelando toda uma vida vivida e sonhada... Completa e profunda, que nunca mais será esquecida!


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